
Varanasi – onde até a morte termina
Varanasi. Uma das mais antigas cidades do mundo. Segundo os hindus foi fundada há 5 mil anos por Shiva, o Deus da destruição, aquele que destrói para se trazer o novo. É o transformador. Foi ele que amorteceu o rio Ganges em sua cabeça antes dele cair na Terra. Sim, as tradições hindus são belíssimas.
Varanasi, a cidade sagrada da Índia. Onde o Ganges recebe os restos dos seus filhos indianos.
Poético? Sim, mas a realidade não tem nada de poesia.

Cheguei no aeroporto e fiquei caçando alguém para dividir um táxi comigo. Achei um casal, que iria próximo ao meu hostel. No caminho fomos conversando sobre o Brasil e a Índia. O que o senhor reclamava do povo indiano eu retrucava que a gente era parecido. Depois da minha passagem pela Índia já não acho. Indiano não é desse planeta.
Varanasi é o lugar onde os indianos vão celebrar a vida e aceitar a morte. É ali nas águas do Ganges onde a existência deles faz sentido. O ciclo se fecha. Nas águas poluídas do Ganges, eles tomam banho, lavam roupa, escovam os dentes, são cremados e suas cinzas lançadas ao rio. É a porta do céu.

Á beira do Ganges ficam os Ghats. São os degraus que dão acesso ao rio, cada Ghat tem um nome e algo importante.
Os mais peculiares são os crematórios onde os corpos são queimados.
Agora de volta a realidade. Varanasi é o ápice do caos! Tudo faz sentido em se dizer que o deus da destruição criou essa cidade. Ela é imunda, fedida, lotada, com vacas folgadas pelas ruas, cheia de lixo, extremamente barulhenta e confusa.
Fiquei numa região próxima ao Ghat Harishchandra, um dos crematórios. A rua do crematório é incrívelmente suja. Vi umas criancinhas catarrentas andando descalças pisando nas bostas secas das vacas. Crescer pobre na Índia é ser um sobrevivente nato.
Templos de Varanasi
Na minha primeira manhã em Varanasi decidi ir com o guia do hostel, o Anil, fazer um tour pelos templos de Varanasi. Quando cheguei na noite anterior fiquei meio assustado pelo caos de Varanasi e achei que precisava de alguém para me dar uma luz. Foi a melhor coisa que fiz.

Além de explicar um pouco sobre a cidade e bastante sobre os templos, Anil é um cara muito divertido. Muito mesmo. Eu precisava de umas risadas para me abrir para aquele caos. Aceitar a Índia é a chave para conhecê-la.
Entre as piadas de Anil e suas explicações sobre o hinduísmo e os templos fui relaxando. Mas não sei se entendi. Entender o que é a Índia é um desafio.
O paradoxo da nossa existência e todas as incongruências da vida parecem que são jogadas na nossa cara. Talvez daí venha esse fascínio pela Índia. O país mais singular e fascinante desse planeta.


Passamos pelo barulhento templo ao deus Durga, onde toda hora alguém toca um sino, pelo belo Tulsi Manas Mandir mais imponente e novo, pelo estranho Kalbhairav e pelo templo Sankat Mochan, do deus Hanuman que possui cara de macaco. Por isso os macacos são sagrados ali dentro o que os torna ainda mais folgados. E por último o templo Tridev.

É preciso dizer que os templos de Varanasi não são grandiosos arquitetonicamente falando mas muito interessantes de se visitar, pelas pessoas, os rituais, a história de cada deus.

Ghats
Chegando a primeira vez a beira do Ganges é impactante. Ainda mais que saí já no Ghat do crematório o Harishchandra.
Sozinho, com cara de turista, não demorou para se aproximar espertalhões querendo arrancar um dinheiro. Já tinha lido sobre isso.

Existe um comércio sobre a observação da queima de corpos em Varanasi. Supostos guias ficam próximos ao crematório e se aproximam dizendo que não pode filmar e fotografar por respeito (o que é verdade) mas se você pagar uns 10 dólares você pode fazer o que você quiser. Decidi caminhar pelos Ghats para observar.

Vi crianças brincando na água, casais com a água pela cintura, rezando, entrando na água e voltando em sincronia. Lavanderias com mulheres e homens trabalhando no rio, lavando lençóis.


Vi Sadhus, os homens santos que renunciaram todos os bens materiais por uma vida espiritual mas passam o dia esmolando nos ghats. Vi grupos de turistas ocidentais, maravilhados pela mística Índia, seguindo guias ou “gurus” cheios de conversa fiada.
Um outro dia estava sentado num Ghat, observando esse movimento único e chega um cara se anunciando como um “padre”, um religioso e queria me dar sua benção.
Começou um papo furado sobre a vida e tal e depois de uns 5 minutos pediu dinheiro. Achei muita cara de pau. Acho que por estar cansado de tanta gente me pedindo dinheiro que resolvi dar um basta com aquele cara.
Retruquei do porquê dele querer dinheiro. Ele não era religioso? Ele não estava falando sobre a vida, sobre a morte, sobre coisas importantes, porque pedir dinheiro?
Ele me olhou meio assustado como quem não esperava essa reação, ficou um tempo parado sem saber o que fazer, levantou e foi embora.
É cheio de falsos gurus como esse em Varanasi. Dos fuleiros até alguns mais sofisticados, com uma conversinha mais concreta mas picareta do mesmo jeito.
No meu hostel mesmo tinha um australiano metido a guru. Falava que ia a Índia a mais de 15 anos, andava com um cajado e se aproximava das pessoas com ar professoral, com resposta pra tudo. Baita mané. O problema é que tem muita gente que vai na onde desse misticismo fajuto.
A Índia é sim mística, complexa, fascinante. Ela coloca suas crenças, suas verdades a prova. Ela mexe com suas convicções.
E nesse momento de baque que esses picaretas se aproveitam. Antes mesmo de chegarem a Índia. O tour “espiritual” para a Índia é um comércio mundial. Ir a Índia para se descobrir, achar seu lugar no mundo. Tem quem jure que a Índia que faz isso.
Eu acredito que não. O lugar não importa, o que importa é a sua vontade de se abrir para o novo, para a mudança. Quando se decide ir a Índia esse processo já começou, o resto é consequência. A mudança é sempre interior, nenhum exterior tem esse poder. Não faça da Índia a muleta para a mudança que você precisa.
Passeio de barco pelo Ganges
No próprio hostel contratei o passeio de barco pelo Ganges. Acordamos de madrugada para ver o sol nascer dentro das águas do rio Sagrado.
Primeiro fomos até a parte do rio onde iriam realizar o ritual do Ganga Aarti. Esse ao amanhecer era mais recente, o mais tradicional é feito todos os dias ao pôr-do-sol e mais tarde mostro como foi.

https://www.youtube.com/watch?v=rrND0oJqXDw
Já com os primeiros raios da manhã, começamos a navegar lentamente pelo rio. Subindo devagar, podendo apreciar cada ghat, vendo os crematórios que não param nunca, grupos de yoga barulhentos, macacos correndo pelos telhados, os ghats mais importantes e aquele sol incrível que só a Índia tem.

O sol nascente e poente é uma bola vermelha coberta por uma névoa em toda a Índia, como uma pintura caprichada. O barqueiro ainda quis parar para comprar Chai. Masala Chai, a versão com ainda mais especiarias do famoso chá indiano. É uma delícia. E fomos assim, entre um gole e outro de chai, vendo a vida seguir à beira do Ganges entre um tráfego intenso de barcos.


Ganga Aarti
Esse é um ritual hindu realizado todos os dias após o pôr-do-sol no Dashashwamedh Ghat. É um agradecimento a deusa Ganga, o rio sagrado, pela sua luz divina que a todos ilumina e purifica, pensamento, espírito e corpo. O pessoal do Viagens Culturais explica bem a cerimônia:
“Cada objeto tem uma simbologia dentro do hinduismo e no “Aarti” não poderia ser diferente. Na cerimônia “Aarti”, estão representados os 5 elementos físicos: as flores representam a terra (solidez), a água e o lenço que acompanha corresponde ao elemento água (liquidez), a lamparina ou vela representa o componente de fogo (calor), o tipo de leque de pavão transmite a qualidade preciosa de ar (movimento), e os elementos da cauda de iaque representam a forma sutil de éter (espaço). O incenso representa um estado de espírito purificado, e “inteligência”, oferecido dentro de uma ordem estabelecida para as oferendas. “Assim, toda a existência do Ser e todas as facetas da criação material são simbolicamente oferecidas aos ‘deuses” através da cerimônia “Aarti”.”

É uma linda cerimônia cheia de cheiros, cor, fogo, música e que termina com todos colocando flores no leito do rio.
https://www.youtube.com/watch?v=jnjgzgSPrUU
Mercados de Varanasi
Não resisti e contratei outro tour com o Anil. Esse seria pelos mercados de Varanasi. Se as ruas já são o caos total que dirá os mercados com todo tipo de coisa para se vender?
Já para ir até lá foi engraçado. Estávamos eu, o Anil e mais um americano do hostel. Daí que a gente pára em frente a um cara com um riquixá. Para duas pessoas. Eu falei que não ia dar. Mas o Anil, falou que dava, o “piloto” do riquixá não ia sentado no banco, ia pedalando sem sentar, o Anil no banco do piloto e eu e o americano no no riquixá.


A situação era meia bizarra e me deu um ataque de riso. Na Índia vale tudo, não tem ordem, controle, nada. Se da pra fazer alguma coisa faça. Difícil entender o porquê do país não ser violento. Comparado ao Brasil é bem tranquilo.


Primeira parada foi no mercado de Paan muito popular na Índia e em toda a Ásia. Paan é um preparado com a folha de betel, que você escolhe o que vai dentro, noz de areca, cardamomo, xarope de açucar, flor desidratada e vários condimentos para melhorar o sabor. É meio amargo com doce, bem estranho. Tem a versão com o tabaco enrolado, onde os indianos ficam mascando e cuspindo. Além de nojento faz um mal tremendo aos dentes e dá câncer na boca. O mercado, como não podia ser diferente é lotado, sujo e barulhento. Existem várias qualidades, cores e texturas da folha e a negociação ali é intensa.


Passamos no mercado de especiarias, que na verdade é um quarteirão com várias e várias lojas vendendo o que a Índia mais ama: tempero! Cardamomo, canela, pimenta, muita pimenta, curry em pó e tudo o que você imaginar e nunca imaginou.

Experimentamos o maravilhoso maliyoo, um doce a base de leite e especiarias (claro!) parecido com a consistência de um mousse mas muito, muito mais leve.


Também experimentamos um famoso lassi, mas era um lugar que só iam turistas, como já tinha tomado lassi em Nova Delhi (e tomei depois em vários lugares) achei que aquele lassi turbinado, de indiano não tinha nada.

Para fechar, o mercado das flores, meu preferido por ser o mais bonito, cheiroso e colorido.




Crematórios no Ganges
Para fechar esse meu relato por Varanasi vou falar sobre um dos pontos que mais chocam quem é de fora. A queima dos corpos nos crematórios a beira do Ganges. Esse ritual hindu visa acabar com o ciclo de reencarnação. Ser cremado e suas cinzas lançadas ao rio sagrado é o Moksha, a iluminação espiritual e libertação de tudo.
Existem dois crematórios, o do Ghat Harishchandra que fiquei próximo e o maior de Manikarnika. Confesso que chegar ali sozinho me deixou apreensivo. O lugar, como não poderia deixar de ser, é sujo, com fuligem, muita lenha e muita gente em volta que você não sabe se são parentes, curiosos ou falsos guias em busca de um troco.

Me coloquei discretamente num cantinho só para observar. O ritual é o seguinte: eles vêm com o corpo numa maca, com muito barulho, gritando mas não com tristeza, todo o ritual é uma celebração, um fim de ciclo desejado. Até música alguns têm.
O corpo vem coberto com belos tecidos e o mergulham no Ganges. A base da fogueira já está lá, eles posicionam nessa base, terminam de cobrir com lenha, usam ghee (manteiga purificada) para ajudar na queima e ateiam fogo. Fiquei ali olhando esse processo, na verdade é estranho mas bonito. Num que observei tinha um saco plástico para fora, depois vi que o saco estava cobrindo o pé do morto, em pouco tempo o saco derreteu e grudou no pé que começou a esturricar. Sim, é estranho mas ao mesmo tempo é o fim de todos nós.
Ouvir que queimam corpos ao ar livre dá uma ideia de barbárie mas não tem nada a ver com isso. É um processo, o ponto final no ciclo da vida. Nada mais natural.
Não fotografei nem filmei, e eles não dão dimensão do que é tudo isso. Se você quiser passar por isso, vá a Varanasi e experimente.
É uma viagem única!
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Fontes de consulta:
Ganga Aarti / Moksha / Viagens Culturais

